O negacionismo climático em quatro pistas
Emanuel Fonseca Lima
Se há tanto consenso científico, se as consequências já são sentidas (e com cada vez mais intensidade e frequência), como ainda há quem fale que as mudanças climáticas não são reais? Como um discurso que vai na contramão de tudo aquilo que se precisa fazer para enfrentar o problema ganha tanta força a ponto de se tornar uma força política relevante? Nesse texto, vamos trabalhar quatro perspectivas, que aqui chamaremos de “pistas”, que ajudam a ter uma visão mais ampla e a encontrar algumas respostas para essas perguntas.
A primeira delas é dada por Naomi Oreskes e Erik Conway no livro Merchants of Doubt: How a Handful of Scientists Obscured the Truth on Issues from Tobacco Smoke to Climate Change. Os autores lembram que, quando se denunciava o potencial cancerígeno do tabaco, um pequeno grupo de cientistas, muito bem financiados pelo lobby da indústria tabagista, produzia trabalhos para desacreditar as pesquisas existentes e lançar dúvidas sobre as evidências científicas do problema. O mesmo ocorreu em relação às evidências da relação entre lançamento de poluentes e as chuvas ácidas, bem como com a destruição da camada de ozônio e emissões de CFCs.
Com as mudanças climáticas não é diferente: grupos e empresas com interesses políticos e econômicos diretos em afastar a existência desse fenômeno ou negar sua relação com a ação humana financiam estudos para promover o negacionismo e colocar em xeque o consenso científico sobre o tema. Ou seja, o negacionismo é um instrumento utilizado por aqueles que têm interesse político ou econômico em afastar a regulação ou responsabilização por uma atividade que gera algum tipo de consequência negativa para sociedade.
A segunda é dada por Bruno Latour na obra Onde aterrar: como se orientar politicamente no Antropoceno ao ver uma relação entre o negacionismo climático, a explosão das desigualdades, o movimento por desregulação/desmantelamento do Estado de bem-estar social. No final das contas, nos três casos o que está sob ataque são os vínculos de solidariedade, de um mundo comum a ser partilhado.
É como se as “elites” tivessem se dado conta de que não há, no atual modelo de desenvolvimento, um planeta viável para todos e por isso tivessem partido para o “cada um por si”.
Em linhas bem gerais, um dos fundamentos do Estado de bem-estar social está justamente em um ideal de solidariedade, o de que é importante que a sociedade (aqui representada pelo Poder Público) desenvolva medidas (políticas públicas como saúde universal, assistência social, educação gratuita, entre outras) para que todos, incluindo os mais pobres, possam ter condições de vida dignas. Esse mesmo ideal está presente na ideia de que reduzir as desigualdades é um objetivo que deve ser atingido ou que é necessário reduzir atividades poluentes, assegurando um ambiente ecologicamente equilibrado para todos, inclusive as futuras gerações e demais seres vivos.
Não é coincidência que um discurso tão focado no indivíduo, no ganho pessoal, esteja sendo o plano de fundo para se contrapor a esse ideal de solidariedade.
A terceira pista pode ser encontrada no livro Age of Anger: a history of the present de Pankaj Mishra. De acordo com o autor, como a modernidade não conseguiu cumprir promessas como liberdade, prosperidade e estabilidade para todos, foi criado um terreno bastante fértil para discursos que buscam inimigos imaginários e o retorno a uma “Era de Ouro” que já teria sido vivida no passado. Ganha força uma política, que tem suas origens no século XVIII, e é estruturada em cima de ressentimento, de ódio a minorias que teriam todos os privilégios enquanto os demais se tornam cada vez mais empobrecidos.
Esse sentimento de frustração, aliado ao ódio aos “privilegiados”, como minorias étnicas e imigrantes, e ao desejo de retornar a um passado idealizado, torna-se um combustível poderoso para ascensão de líderes populistas autoritários. A ciência é vista como uma forma de expressão dessa “elite globalista”, que cria teorias para justificar a manutenção e ampliação de seus privilégios. É nesse contexto que o negacionismo climático ganha tanta força política. Não é coincidência que esses elementos estão presentes no discurso de líderes autoritários ao redor do globo: Trump, Milei, Bolsonaro, Modi, Orbán, Bukele, entre tantos outros.
A mistura de ressentimento, exclusão, desilusão e desinformação ganha um caráter ainda mais explosivo quando um outro ingrediente é adicionado: a tecnologia. E é nesse ponto que temos a quarta e última pista, dada no livro Os engenheiros do caos de Giuliano da Empoli.
A lógica de algoritmos das redes sociais permite a formação de “bolhas” e a viralização de conteúdos. Esse mecanismo é utilizado com bastante eficácia por “engenheiros do caos” como o Steve Bannon, que auxiliados por dados detalhados do perfil de usuários obtidos, conseguem distribuir mensagens personalizadas, com forte apelo emocional, carregadas de medo e ressentimentos, e que possuem grande potencial de engajamento.
Eles se valem do que Da Empoli chama de “política quântica”, que permite fragmentar o discurso conforme o grupo desejado, ainda que com mensagens contraditórias. Não há aqui qualquer preocupação com coerência ou com adesão à realidade: o discurso é moldado e ajustado conforme a conveniência do momento e da audiência. Ao mesmo tempo em que se nega as mudanças climáticas para o público geral, adota-se medidas para resguardar os interesses de grandes investidores que seriam afetados por esse fenômeno.
Dessa forma, a própria noção de “real” é colocada sob questionamento: os fatos passam a ser substituídos por opiniões, ainda que estas estejam contra todas as evidências, como ocorre, por exemplo, com o negacionismo climático.
Essas quatro “pistas” ajudam a entender o quadro maior: diante da constatação pelas elites de que o atual modelo de desenvolvimento leva a uma situação de que “não há planeta para todos”, aposta-se no ataque a qualquer noção de solidariedade, de mundo a ser partilhado. Para isso, a estratégia é clara: a frustração com as promessas não cumpridas da modernidade é canalizado em um discurso político poderoso, potencializado pela lógica de algoritmos das redes sociais, e que se funda no ressentimento e que tem a verdade como sua primeira vítima.
Sair dessa armadilha não é uma tarefa fácil: luta-se contra uma estrutura complexa, muito bem financiada e que domina técnicas de engajamento, ainda mais em um momento em que as Big Techs assumiram explicitamente seu apoio a autocratas como Donald Trump. No entanto, qualquer estratégia deve passar pela defesa da solidariedade, da noção de “comum”, pelo resgate da ideia de que os seres não podem viver sós, que são interdependentes, tanto entre si quanto com os demais elementos do planeta. Não é a toa que há tanto empenho em se atacar esses ideais: eles são a base da única saída possível para esse dilema.
Referências
DA EMPOLI, Giuliano. Os engenheiros do caos Tradução de Arnaldo Bloch. São Paulo: Vestígio, 2020
LATOUR, Bruno. Onde aterrar: como se orientar politicamente no antropoceno. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020
MISHRA, Pankaj. Age of anger: a history of the present. New York: Farrar, Straus and Giroux, 2017.
ORESKES, Naomi; CONWAY, Erik M. Merchants of doubt: how a handful of scientists obscured the truth on issues from tobacco smoke to global warming. 1st U.S. ed. New York: Bloomsbury Press, 2010