O DNA colonial das mudanças climáticas: por que descolonizar a luta ambiental?
Emanuel Fonseca Lima
É pouco provável que alguém que defenda que é possível curar uma doença ou resolver algum problema persistindo nas suas causas seja levado a sério. Mas por que o mesmo não acontece quando as mudanças climáticas são o problema a ser enfrentado?
Dizer que o aquecimento global tem relação com o projeto colonial pode soar estranho, já que este normalmente é encarado como algo que pertence aos livros de história: teria começado com as grandes navegações, com o início do domínio das potências europeias sobre o planeta e acabado com os processos de independência das antigas colônias. Mas se o problema for analisado com um pouco mais de atenção, ficará claro que essa é uma ideia errada e que acaba fazendo com que questões fundamentais para lidar com as mudanças climáticas deixem de ser notadas.
Diferentemente do que diz o senso comum, o projeto colonial não se resumiu ao domínio político, jurídico e econômico das metrópoles sobre as colônias. Antes de tudo, ele envolveu a imposição de uma forma de pensamento, de uma organização social, de uma maneira de entender e se relacionar com o mundo. Prova disso é que mesmo após os processos de independência ocorridos ao longo dos séculos XIX e XX, a referência e modelo a ser seguido continuaram sendo as antigas metrópoles. Ou seja, apesar do fim do controle político, jurídico e econômico direto, a forma de lidar com o mundo e seus problemas continuaram sendo as impostas pelos colonizadores, como se fossem as mais corretas ou mesmo as únicas possíveis.
Esse caráter mais amplo do projeto colonial pode ser mais facilmente entendido se feita uma diferenciação entre as noções de “colonialismo” e “colonialidade”. A primeira tem um caráter mais restrito e se refere especificamente ao domínio político-jurídico de uma população por outra. Já a colonialidade é mais profunda e duradoura, existindo mesmo após o fim da dominação direta. Ela abrange outros aspectos como, por exemplo, os tipos de saberes ou formas de viver são mais valorizados.
Para se impor, o projeto colonial utiliza uma estrutura (chamada “matriz colonial de poder”) que está presente nos mais diferentes aspectos da vida, classificando, hierarquizando, estigmatizando, calando e apagando aqueles que se colocam contra ela. Assim, o homem branco é colocado em posição central, sendo considerado superior às mulheres (sexismo), pessoas de outras etnias (racismo) e aos demais seres vivos. Ele se torna a “regra”, o “normal” e tudo aquilo que é diferente dele é considerado o “desviante”, que precisa ser “adequado”. Isso está presente, por exemplo, nos padrões estéticos, na representatividade em papéis/funções, na diferença de tratamento dado às pessoas nas mais variadas situações, entre outros.
Ao considerar o homem como sendo separado da natureza, superior aos demais seres vivos e destinado a dominá-la, o projeto colonial lançou as bases para seu modelo econômico, o extrativismo. Neste, o restante do planeta passa a ser encarado como “recursos” a serem explorados para gerar o máximo de lucro no menor período de tempo (especialmente para os países mais ricos). Um exemplo disso é a devastação de biomas de países da América Latina, Ásia e África para exploração da pecuária, mineração ou monocultura, que visa atender às demandas dos países mais ricos. Em todos esses casos, uma minoria enriquece enquanto a maioria local sofre com os impactos ambientais e com trabalhos precarizados.
Esse modelo predatório, que busca o lucro mesmo diante do esgotamento do planeta, é o que está por trás das emissões, sem qualquer controle, de gases de efeito estufa que provocam as mudanças climáticas. Ele gera uma pressão constante para poluir, desmatar cada vez mais. Toda tentativa de limitar, de reduzir essas práticas é vista como um obstáculo ao progresso, uma interferência indevida na economia. Assim como os outros mecanismos do projeto colonial, ele se coloca como a única alternativa possível enquanto as demais são vistas como utópicas e inviáveis.
Como se pode ver, o modelo de desenvolvimento que deu origem às mudanças climáticas é apenas uma parte de um fenômeno maior. Racismo, sexismo e o estabelecimento de uma forma predatória de habitar o planeta possuem o mesmo “DNA”, se articulam e se reforçam, de modo que não se pode lidar de forma eficaz com um desses problemas sem que se considere os demais.
É muito comum, inclusive, que eles andem de mãos dadas: é o que acontece, por exemplo, quando povos indígenas são alvo de violência territórios por aqueles que desejam enriquecer com a explorar minérios ou monocultura em seus territórios ancestrais. Nesse tipo de situação, as mulheres se tornam ainda mais vulneráveis a esses ataques.
Por isso, qualquer tentativa de lidar com as mudanças climáticas que não enfrente o projeto colonial, que não seja antirracista, antimachista, intercultural e não questione as relações entre os humanos e os demais entes que habitam o planeta não tem como dar certo. É o mesmo que tentar tratar uma doença atacando apenas os sintomas, ignorando (e até reforçando suas causas).
O primeiro passo para uma estratégia efetiva de lidar com esses problemas é descolonizar o pensamento, reconhecendo as conexões que existem entre cada um desses aspectos e levando em consideração as experiências de povos que, a exemplo dos indígenas, não seguem essa lógica colonial. Há caminhos interessantes, que podem somar bastante na busca por uma solução, como, por exemplo, o Bem Viver, o Ubuntu...mas isso é assunto para um próximo post. O ponto aqui é que não há uma falta de perspectiva, mas sim uma falta de disposição de se abrir a elas. E para isso é necessária uma postura mais aberta, intercultural e respeitosa com saberes que são frequentemente marginalizados.
Referências
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